sábado, 4 de dezembro de 2010

O CEGO NA SOCIEDADE


O CEGO NA SOCIEDADE

A longa viagem que me trouxe do meio do Oceano Pacífico até à Suíça e que me dá hoje a alegria de me encontrar com vocês se realizou por causa de um livro. Escrevi esse livro primeiramente na minha língua materna, o francês, e lhe dei o nome “Et la Lumière Fut”. Depois, publiquei-o em inglês, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Finalmente, foi traduzido para o alemão com o titulo “Das wiedergefundene Licht”. É a história de minha vida, ou antes, daquilo que a vida me ensinou, desde a idade de sete anos e meio, quando, num acidente, perdi, completa e irremediavelmente, a visão — até a primavera de 1945, aquele momento em que saí com vida do campo de concentração Buchenwald, na Alemanha nazista.
Esse livro é, indubitavelmente, o mais pessoal de todos os que escrevi até hoje — o mais pessoal e quase que o mais íntimo. Contudo, é aquele que me tem dado até agora a oportunidade de entrar em contato com o maior número possível de meus semelhantes. Isto não me surpreende, pois sempre que nos damos ao trabalho de sondar as profundezas de uma experiência e extrair dela tudo o que ela contém, do mais simples e do mais oculto, cessamos de falar só e unicamente de nós mesmos: entramos nos domínios daquilo que é mais precioso, nos domínios da experiência universal, aquela experiência que compartilhamos com os outros.
Portanto, não vou pedir desculpas por lhes contar hoje um pouco mais de mim. Aquilo que um homem descobriu em sua vida — por mais singular e única que ela seja — pertence a todos. E se suas descobertas podem elevar e enriquecer a vida de outros, é sua obrigação falar delas.
Pois bem, é este o meu caso. O que trinta e sete anos de cegueira me ensinaram — devo admitir — foi fazer grandes esforços; porém, eles são mais do que esforços: são também descobertas. Mal posso esperar para lhes contar algumas delas.
Apenas dez dias após o acidente que me roubara a vista, fiz a descoberta fundamental. Estou ainda como enlevado nela. Só posso descrevê-la com palavras claras e diretas: eu perdera totalmente a visão; não podia mais enxergar a luz do mundo. Contudo a luz continuava ali.
Ela estava ali. Tentem imaginar como isto deve ter constituí¬do uma surpresa para mim, menino que ainda não tinha oito anos. É verdade que não podia mais ver a luz fora de mim, a luz que ilumina as coisas, que está associada a elas e influi nelas; to¬do mundo estava convencido de que eu a perdera para sempre; mas a reencontrei em outro lugar. Encontrei-a dentro de mim mesmo, e — que milagre! — ela estava intacta.
Contudo, este “dentro de mim mesmo” — onde se encon¬trava? Em minha cabeça, em meu coração, em minha imagina¬ção? Não sentem vocês que tais indagações são de natureza pura¬mente intelectual e dignas somente daqueles que já esqueceram a simplicidade e o poder indiscutível das experiências genuínas? Para mim — eu tinha oito anos de idade e vivia em vez de pensar —, para mim, a luz estava presente. Sua fonte não cessara. Eu sen¬tia que ela continuava jorrando a todo momento e transbordan¬do, sentia o quanto ela desejava espalhar-se pelo mundo afora. Era só recebê-la. Ela estava inevitavelmente presente. Estava to¬da lá, e eu reencontrei seus matizes e movimentos, isto é, suas co¬res, as quais eu havia amado tão apaixonadamente poucas sema¬nas antes.
Vocês compreendem que isto era algo inteiramente novo, tanto mais que contradizia tudo aquilo em que acreditavam aque¬les que têm olhos. A origem da luz não se encontra no mundo ex¬terior. Só acreditamos que esteja lá em virtude de uma ilusão co¬mum. A luz habita onde a vida também habita: dentro de nós.
Contudo, tive de me esforçar para achar meu caminho entre as portas, as paredes, os homens e as árvores. Como acontece com todos os cegos, eu me machucava freqüentemente. Porém, não demorei a aprender que esbarrava nas coisas unicamente quando me esquecia da luz. Quando não deixava de prestar atenção à luz, corria muito menos perigo. Quase que imediatamente depois dis¬to veio a segunda grande descoberta. Havia apenas um meio de poder contemplar a luz interior: amar.
Quando eu era vencido pela tristeza, quando me deixava ar¬rebatar pela cólera, quando invejava aqueles que possuíam a luz de seus olhos, a luz imediatamente diminuía. Às vezes se apagava por completo. Então, eu ficava cego. Porém, esta cegueira era um estado de não mais amar, era estar triste; não era ter perdido a visão.
Falei-lhes de descobertas. Essa foi uma delas, e era tão grandiosa que, muitas vezes, toda uma vida repleta de Religião e Moralidade não basta para que os outros possam realizá-la.
Em outro aspecto, também, desejo deixar dito, fui extremamente afortunado. Tive pais que compreenderam. Nem minha mãe, nem meu pai demonstraram, alguma vez, piedade pela minha sorte. Nunca usaram em minha presença a palavra “infortúnio”. Especialmente meu pai que possuía uma profunda compreensão da vida espiritual logo me disse: “Conte-nos toda vez que fizer uma descoberta”. Descobrir cada vez mais? Ele tinha razão. Não se trata de consolar, nem aqueles que perderam a visão, nem os que sofreram outras perdas — a fortuna, a saúde ou um ente querido. Em vez disto é preciso mostrar-lhes o que essa perda lhes traz, e quais as dádivas que recebem em lugar daquilo que perderam. Porque sempre recebemos dádivas. Deus assim o quer. A ordem se restabelece; nada jamais desaparece completamente.
Eu soube disso aos oito anos de idade, porque havia reencontrado a luz. Desde aquele momento, a cegueira se tornou para mim, uma experiência fascinante e uma tentativa de viver uma vida nova.
Já não podia ler com meus olhos. Porém, que importava? Desenhava, dentro de mim, letras e palavras numa tela, maior e mais luminosa do que todos os quadros negros, e, dentro de poucas semanas, pude aprender a escrever de novo, em Braille.
Com meus olhos, eu não via nem o sol, nem as plantas, nem os rostos. Mas bastava que o calor do dia me tocasse, que uma árvore aparecesse ao longo do caminho, que uma voz me chamasse e imediatamente aqueles seres e aquelas coisas surgiam na minha tela interior. Só faltava aprender algumas técnicas simples a fim de enfrentar os problemas do dia-a-dia — as únicas que ainda podiam ser consideradas dificuldades: escrever em Braille, ler em Braille o mais fluentemente possível, bater a uma máquina de escrever comum, pois era necessário poder entrar em contato com os que viam. Felizmente, aprendi tudo isto muito cedo em minha vida, dos oito aos dez anos de idade.
Além disto, meus pais haviam resolvido deixar-me ficar entre meus colegas que viam. Foi uma decisão ousada. Uma escola especializada para cegos teria oferecido maiores garantias, e ainda hoje acredito que, para a maioria dos cegos, uma escola especial seja mais eficiente e mais vantajosa. Contudo, a obrigatoriedade de viver sob as mesmas condições que todos os outros me ensinou muita coisa.
Eu tinha de esquecer que era cego. Tinha de parar de pensar no assunto. Pude comparar minhas experiências com as dos outros, e compreendi bem rapidamente que minha cegueira me pre¬servava de uma grande desgraça: a de conviver com egoístas ou tolos. Somente aqueles que eram capazes de ser generosos e com¬preensivos procuravam minha companhia. Para mim, a escolha de meus camaradas era bem mais fácil do que para os outros. Não conheci rapazes e moças que esperavam da amizade apenas o lu¬cro pessoal, porque esses nunca se aproximavam de mim. Assim, conheci os melhores, tanto na escola primária, como depois no gi¬násio, em Paris, sem jamais ter de me preocupar com isto. Eles es¬tavam ali, perto de mim, comigo. Eles me interrogavam, e eu os interrogava de volta. Ajudaram-me a viver como se tivesse olhos, ajudaram-me a correr, a subir em árvores, andar de barco e, às ve¬zes, a furtar maçãs. E, para sua maior surpresa e, muitas vezes, pa¬ra surpresa minha, eu lhes ensinava a ver melhor.
Graças à minha cegueira, eu havia desenvolvido uma nova faculdade. A rigor, todo homem a possui, mas quase todos se es¬quecem de usá-la. Essa faculdade é a atenção. Para poder viver sem olhos, é necessário estar muito atento, ficar horas e horas num estado de vigilância e, ao mesmo tempo, de receptividade e de atividade. De fato, a atenção não é, simplesmente, uma virtude da inteligência ou resultado de educação, e algo de que se pode prescindir com facilidade: é um estado de ser. É um estado sem o qual nunca seremos capazes de nos aperfeiçoar. No seu sentido mais exato, ela é o posto de escuta do Universo.
Eu era muito atento. Era mais atento que qualquer um dos meus companheiros. Todos os cegos o são ou podem ser. Assim, adquirem o poder de estar completamente presentes, às vezes até mesmo o poder de transformar a vida ao seu redor, um poder que a civilização distraída do século XX não possui mais.
Estar atento abre uma esfera de realidade de que ninguém suspeita. Se eu, por exemplo, passeava por um atalho sem prestar atenção, completamente imerso em mim mesmo, nem sabia se havia árvores ao longo do caminho, ou qual o seu tamanho, ou se elas tinham folhas. No entanto, quando despertava minha atenção, cada árvore, imediatamente, se fazia presente. Isto deve ser tomado bem ao pé da letra: cada uma das árvores projetava sua forma, seu peso, seu movimento - mesmo quando estava quase imóvel — em minha direção. Eu podia apontar o seu tronco e o lugar de onde saíam os primeiros galhos, mesmo quando estava a vários metros dela. Pouco a pouco, algo novo se me tornava evidente, algo que nunca se encontra nos livros: o mundo exerce de longe uma pressão sobre nós.
Aqueles que vêem cometem um estranho engano: acreditam que conhecemos o mundo somente através de nossos olhos. De minha parte, descobri que o Universo consiste de pressão, que cada objeto e cada ser vivo se revela a nós, em primeiro lugar por uma espécie de pressão muito suave e inequívoca, que nos revela sua intenção e sua forma. Passei por uma experiência maravilhosa que foi a seguinte: uma voz, a voz de uma pessoa, faz com que ela apareça como uma imagem. Quando a voz de uma pessoa me alcança, percebo logo sua figura, seu ritmo e a maioria de suas intenções. Mesmo as pedras pesam sobre nós à distância, e assim também os contornos das montanhas distantes e a súbita depressão de um lago no fundo de um vale.
Essa comunicação é tão exata que eu, passeando de braço dado com um amigo pelos caminhos dos Alpes, sabia como era a paisagem e, algumas vezes, era capaz de descrevê-la com uma clareza surpreendente. Algumas vezes; sim, apenas algumas vezes. Eu o conseguia quando convocava toda minha atenção: Permitam-me que diga com toda franqueza: se todos os homens fossem atentos, se se encarregassem de sê-lo em todos os momentos de suas vidas redescobririam o mundo; veriam subitamente que o mundo é inteiramente diferente do que acreditavam que fosse. Toda a ciência se tornaria obsoleta num instante, e nós penetraríamos no milagre da cognição imediata.
Essa cognição imediata e completa, eu lhes asseguro, não a possuo. Os cegos não a têm. Todavia, têm uma chance adicional quando tentam aproximar-se dela.
Aos dezessete anos de idade, formei-me no colégio e entrei na Universidade. Porém, isto já não era essencial para mim. A fal¬sa paz entre as duas guerras tinha chegado ao fim. A Europa se lançara no pior conflito de sua história, e minha pátria, a França, fora conquistada em cinco semanas. Paris estava ocupada pelos nazistas.
Como vocês podem imaginar, muitas vezes me perguntaram como me fora possível participar da Resistência e prestar valiosos serviços a ela. Com mais freqüência ainda me perguntaram por que eu, um cego, escolhera fazer isso. Permitam-me que o explique de uma maneira mais simples do que jamais o havia explicado antes.
Durante os primeiros meses da ocupação, experimentei algo como uma segunda cegueira. Isso aconteceu embora eu não fosse nacionalista. A ocupação da França fora um choque para mim; porém, pensava na opressão de toda a Europa ainda mais do que no terrível e todo-abrangente fato da ocupação em si. Além do mais, nem eu nem minha família éramos anti-alemães. Eu tinha estudado, cheio de respeito e fascinação, a cultura e a língua alemãs. Contudo, essa segunda cegueira, a ocupação nazista, eu a experimentei tal como a primeira.
Nove anos antes, a luz externa me havia sido tirada. Desta vez, tiraram-me a liberdade externa. Nove anos antes, eu reencontrara, dentro de mim, a luz, intacta e até fortalecida. Desta vez, encontrei dentro de mim a liberdade, presente e exigente co¬mo sempre. Em poucas semanas, compreendi que o destino espe¬rava de mim, pela segunda vez, a mesma tarefa. Havia aprendido que a liberdade era a luz da alma.
Ninguém tem o direito de interferir com o livre-arbítrio dos homens ou com o seu auto-respeito. Ninguém tem o direito de as¬sassinar em nome de uma idéia — muito menos em nome de uma idéia insana. Lembrar-me sem cessar de que a liberdade existia, e lembrar constantemente esse fato a todos que encontrava, tor¬nou-se para mim um dever, tão incontestável quanto o de manter viva a luz atrás dos meus olhos fechados. Não houve nenhuma ou¬tra razão para minha entrada no movimento da Resistência. Mas houve a dificuldade de como consegui-lo.
Já tinha resolvido muitos problemas, problemas relacionados com meus estudos, com a inteligência e com a vida interior. Porém, agora deparava com um muito difícil: como poderia eu en¬contrar um lugar na sociedade dos outros, a fim de mostrar que era útil e necessário a eles e com eles? Jamais um cego seria admi¬tido num grupo da Resistência. Ninguém poderia visualizar um lugar para ele.
Por isso, na primavera de 1941, fiz aquilo que, sem dúvida, tivesse eu ainda a luz dos meus olhos, nunca teria feito de uma forma tão completa e repentina: Formei, eu mesmo, um grupo no movimento de Resistência.
Em tomando a iniciativa, imediatamente invalidei todos os preconceitos. Apenas pela minha resolução, já havia provado que precisavam de mim. E isso, realmente, não foi difícil. Um trabalho feito às ocultas requeria mãos e olhos, mas também coragem e pensamentos claros. Também era necessária uma convicção que não dependia de uma idéia, mesmo que fosse uma idéia hones¬ta, mas sim de uma experiência adquirida dia após dia. Essa convicção, eu a possuía.
Tudo mais aconteceu como que por si mesmo. Reuni em volta de mim várias centenas de jovens, na maioria estudantes. Editamos e publicamos um periódico clandestino. Formamos Pe¬quenos grupos de ação que pudessem tomar-se um dia, os qua¬dros de um movimento nacional. De fato, no começo de 1943, eu e 600 dos meus camaradas pudemos, finalmente, unir-nos ao movimento “Défense de la France”, um dos cinco mais importantes grupos não comunistas do movimento da Resistência.
Repito: Não tenho certeza de que me teria saído bem sem minha cegueira. Foi o líder cego a quem todos os meus camara¬das escolheram e em que acreditavam. Desde a primeira hora, as¬sumi toda a responsabilidade pelo alistamento de novos membros. Cada novo candidato era apresentado a mim, e somente a mim. Eu conversava com ele bastante tempo. Dirigia-lhe aquele olhar especial que a cegueira me ensinara. Era muito mais fácil para mim do que para qualquer outra pessoa despojá-lo de todas as aparências. Sua voz expressava seu interior e, às vezes, o de¬nunciava.
Finalmente, me era possível fazer uso daquela vida interior que o destino me forçara a descobrir tão cedo e tão a fundo. Servia-me dela para saber melhor o que eu mesmo queria, e para ave¬riguar do que os outros eram capazes. A habilidade de concatenar pensamentos e sentimentos, de ordenar, no meu coração e meu espírito, o mundo sem a ajuda de objetos, podia, finalmente, ser utilizada para uma tarefa, cujas metas transcendiam a minha pes¬soa. Tenho certeza de que, durante mais de dois anos, nenhum dos meus camaradas jamais pensou nas limitações que a cegueira im¬punha ao meu trabalho. Eu não podia andar armado, nem percorrer as ruas de Paris com um saco de jornais clandestinos ao om¬bro, nem me pôr em campo para descobrir uma base militar alemã. Meus camaradas iam em meu lugar. Porém, antes de saírem, vinham a mim para saber o caminho; depois voltavam a mim para relatar seus triunfos, e era minha tarefa fazer um balanço dos re¬sultados e decidir sobre novas ações.
Em poucas palavras — perdoem-me esta declaração que faço novamente contra minha vontade —, descobri que não existe cegueira quando se trata de refletir, de querer, de planejar alguma coisa, ou mesmo de ajudar os homens a viverem. E quando, em 1943, unira meu pequeno pelotão à “Défense de la France” e me tomara, de repente, um membro de seu “Comité Directive Clan¬destine” e responsável pela distribuição de um jornal que saía de 15 em 15 dias, com uma tiragem de mais de 250.000 exempla¬res, ninguém ao meu redor se surpreendeu realmente.
O teste a que fui submetido um pouco mais tarde foi de na¬tureza inteiramente diferente. Em julho de 1943, fui preso pela Gestapo. Isto aconteceu, como no caso de quase todos os comba¬tentes da Resistência, por causa de uma traição; sem traidores, a Gestapo nunca teria podido lançar sua rede sobre uma só organi¬zação clandestina. Fui interrogado durante quarenta e cinco dias; fiquei preso durante seis meses e, em janeiro de 1944, fui levado para o campo de concentração de Buchenwald. Desta vez, minha sorte não tinha nada de extraordinário.
É impossível dizer em poucas palavras o que era um campo de concentração, e não tentarei fazê-lo. Além do mais, haveria na Europa uma só pessoa que não o soubesse? Porém, eu não era um preso igual aos outros, pois era cego. Devo ao menos contar¬-lhes porque sobrevivi.
Dos 2.000 franceses que chegaram a Buchenwald no mesmo dia que eu, apenas trinta estavam vivos quando o Terceiro Exército Norte-Americano libertou o campo. O fato de eu ainda estar aqui é um daqueles trinta milagres. Meus 29 camaradas não podem explicar melhor que eu.
Contudo, não hesito em dizer que devo à minha cegueira, mais do que a qualquer outra coisa, o fato de ter sido capaz de agüentar. Não tomem isto no sentido físico. Se consegui ser tole¬rado num campo onde os nazistas aniquilavam, sistematicamente, todos aqueles que classificavam como “incapazes para o traba¬lho”, foi porque eu havia encontrado uma maneira de ser útil à comunidade dos prisioneiros. Tornara-me intérprete. E essa era uma função real. Não agia como intérprete entre meus camaradas e os nazistas — estes nos ignoravam, a não ser nas horas de exter¬mínio —, mas entre meus próprios camaradas. Nessa comunidade internacional que vivia debaixo do terror era muito importante falar francês, alemão e, mais tarde, um pouco de russo. Eu estabelecia as comunicações, transmitia notícias; conseguia escutar as falsas notícias do alto comando da Wehrmacht e as explicava aos meus companheiros, decifrando e corrigindo-as. Essa atividade as¬segurou-me um lugar entre eles. Já não era mais um inválido.
Mas isso não foi o bastante. Para sobreviver num campo de concentração, nenhum estratagema é suficiente, nenhuma forma de inteligência é bastante. Quando a morte está presente a todo minuto, quando todos aqueles que amamos desaparecem, quando a dignidade humana se esvai, quando não existe mais um motivo concreto, nem um só motivo razoável para se ter esperança, então se faz necessário um refúgio imediato, todo-poderoso. E esse re¬fúgio é a fé. Todavia, frequentemente, a fé mais fervorosa não é mais que uma crença. É necessário um tipo de fé que esteja enraizada em nosso ser, uma fé que, com o tempo, se torne o nosso próprio eu. Em outras palavras: é necessária uma experiência. Es¬sa experiência, eu a adquirira; a cegueira me havia ensinado um dia.
Eu sabia que, quando a luz me fosse tirada, poderia fazê-la reviver dentro de mim. Sabia que, quando o amor me fosse tira¬do, sua fonte fluiria novamente dentro de mim. Sabia até que, quando a vida está em jogo, é possível encontrar sua fonte dentro do próprio ser.
Sei que estas explanações podem parecer abstratas, e que não se vive de consolo teórico. Para mim, entretanto, não eram abstratas. Toda vez que a cena e as provações do campo se toma¬vam insuportáveis, eu me isolava do mundo. Penetrava naquele refúgio em que a SS não me podia alcançar. Dirigia meu olhar pa¬ra aquela luz interior, que havia visto quando tinha oito anos de idade. Fazia-a vibrar através de mim. E não tardei a descobrir que aquela luz era vida, era amor. Agora podia abrir de novo os olhos — e também os ouvidos e o nariz — à matança e à desgraça. Sobrevivi a elas.
Se existe alguém que não aceita esta explicação, que é a úni¬ca explicação correta, então me parece que esse alguém ignora uma verdade mais importante do que todas as demais, a saber: de que nosso destino se forma de dentro para fora, nunca de fora para dentro. A cegueira, tal como qualquer outra grande perda, física ou moral, ensina-nos essa verdade de maneira tão cabal que, afinal, é impossível negá-la. Como posso chamar ainda de “infortúnio” ao acidente que me trouxe uma tal dádiva?
O infortúnio eu só vim a conhecer mais tarde. Chamo, aqui, de infortúnio àquelas circunstâncias que nossos esforços pessoais são incapazes de mudar; àquelas que nos são impostas pelos pre¬conceitos da maioria e pela indolência dos que estão no poder.
Nunca esqueçamos que a sorte da comunidade dos cegos é a sorte de todas as minorias. Não importa se essas minorias são de origem nacional, religiosa ou física. Quando muito, elas são tole¬radas. Quase nunca compreendidas.
Quando terminou a guerra voltei à minha pátria, pronto pa¬ra concluir meus estudos e escolher uma das profissões para as quais me considerava mais apto: a diplomacia ou o magistério. Mas em 1942, o governo de Vichy, à imitação dos nazistas, havia posto em vigor uma nova lei. Essa lei estabelecia as qualificações físicas exigidas aos candidatos, para serem admitidos às posições controladas pelo governo. Isto se referia, especificamente, ao magistério e à diplomacia.
Hoje, essa lei absurda não existe mais. Porém, foram neces¬sários dezessete anos de esforços infindos para aboli-la. E naque¬les dezessete anos, descobri o abismo que separa os que vêem da¬queles que não possuem a luz dos seus olhos.
Sei que a esse respeito, a França se mostrou de uma estreite¬za e de uma obstinação que não existem em outros países. Mas o exemplo francês continua muito significativo: os que vêem não crêem nos cegos.
Essa dúvida injusta e tola orientou minhas ações durante to¬dos aqueles anos. Resolvi não lutar contra a lei diretamente, mas sim, apresentar provas. Queria lecionar. E lecionei, por assim di¬zer, à força. Tomei a meu cargo lecionar sem garantias, sem em¬prego fixo, sem direito a pensão e sem ordenado durante as férias. Ofereci meus serviços com uma teimosia persistente. Apenas exigi que eles fossem julgados pelo seu valor real, e não pelo que supunham que valessem. Levei avante uma batalha longa e solitária que, sem dúvida, foi a mais dura de minha vida. Mais uma vez, a história de minha luta não é minha pessoal: é a mesma luta que todos os cegos têm de empreender.
Estou convencido de que chegou a hora de mostrar ao mun¬do a cegueira tal como ela é: não uma enfermidade que os que de¬la sofrem tentam compensar constantemente de acordo com suas capacidades — isto é, sempre de maneira imperfeita —, mas, sim, um estado diferente de percepção. Esse estado tem as dificulda¬des práticas que lhe são inerentes. Um professor cego precisa de uma secretária para obter o material necessário ao seu trabalho. O diretor cego de uma companhia comercial precisa de alguém que o acompanhe aonde quer que vá. Porém, nas condições da vi¬da moderna, tais obstáculos dificilmente são dignos de nota. Qual o advogado, e mesmo qual o engenheiro que, hoje em dia, pode¬ria levar a cabo seu trabalho sem a ajuda de alguns auxiliares competentes?
Tomada realmente a sério, a cegueira é um estado de percepção que — se for aceito e utilizado — é capaz de desenvol¬ver muitas faculdades extremamente necessárias para toda ativi¬dade intelectual e organizacional. Entre duas pessoas de igual ta¬lento, a memória de um cego é melhor que a de uma pessoa que vê. E quando dizemos “memória”, nos referimos, ao mesmo tempo, àquela outra valiosa habilidade: a habilidade de associar fatos e idéias, de compará-los e de perceber noves combinações.
Não existe um motivo misterioso para a memória melhor. Acon¬tece simplesmente que os cegos, no decorrer do tempo, são força¬dos a memorizar mais do que aqueles que vêem. Por conseguinte, um cego, como eu já falei várias vezes, descobre imediatamente, o alcance todo poderoso e inexplorado da atenção. Em outras palavras, ele sofre menos a distração do mundo. Por que não tirar proveito disto? Por que não destinar aos cegos aquelas tarefas que no mundo requerem este raro talento?
Permitam-me fazer uma sugestão prática. Já que é uma realidade serem fortes os preconceitos contra os cegos e o preconceito é aquilo que o ser humano tem mais dificuldade de superar, eu gostaria de sugerir a seguinte norma: cada vez que um cego se candidate a um trabalho, que lhe seja dada uma chance; que ele seja empregado por um período de experiência. Poderíamos planejar um estágio de seis ou doze meses durante o qual o escritório, a escola ou a firma que o contratou não teria compromisso com ele.
De dez cegos, a nove já foi negado um emprego. Não por se mostrarem incapazes, mas porque nem mesmo lhes foi permitida a oportunidade de dar provas de suas capacidades.
Vamos permitir que eles trabalhem. Vamos confiar neles por algum tempo. Os resultados seriam provavelmente espantosos.
Estou sugerindo exatamente aquilo que consegui para mim mesmo. Na verdade, só conhecemos aquilo que experimentamos em nós mesmos. Aconteceu que, apesar das leis antiquadas, feudais de meu país, eu me tornei professor de universidade e continuo a exercer minha profissão há vinte e quatro anos, sem enfrentar dificuldade alguma, a não ser aquelas inerentes à própria profissão em si.
Atrevo-me a dizer que lecionar é menos difícil para um cego do que para uma pessoa que enxerga. Sempre que este ponto de vista é discutido, sempre se referem à questão delicada da disciplina.
No entanto, eu lhes pergunto: será que todos os professores que enxergam são capazes de manter o respeito de seus alunos?
É óbvio que a disciplina depende da autoridade natural do professor, de sua força moral, de sua capacidade de dar vida à sua matéria. E a autoridade moral nada tem a ver com o fato de enxergar.
Sou professor há vinte e quatro anos e jamais me defrontei com qualquer dificuldade causada pela falta de visão. Na verdade, o oposto é verdadeiro.
Uma aula é um exercício do espírito e do caráter. Baseia-se inteiramente em nossa capacidade de plasmar, de formar a nossa vida interior, de transmiti-la aos outros. Quanto a isso, a cegueira é uma escola sem igual.
Por que haveria de ser necessário, quando me encontro em frente aos meus alunos, observar a posição de seus braços e pernas? Por que deveria eu observar a vaga expressão de seus rostos que transmite apenas a sua distração ou curiosidade?
A cegueira me revelou um outro espaço que não o visto, que só serve para separá-los de mim e me separar deles. Esse outro espaço é aquele onde nascem as atividades da alma e do espírito. Eu o conheço graças a uma longa experiência prática. É o silêncio. Um certo tipo de silêncio me mostra muito melhor o grau de interesse, de compreensão, ou de opressão que provoco em meus alunos que seria impossível conseguir com a ampliação de um filme que mostrasse a presença física deles em câmara lenta.
O que causa, hoje em dia, o fracasso de tantos professores, tanto na Europa como nos Estados Unidos, e se está fazendo um grande alarde desse fracasso, é a sua incapacidade de sair de sua própria cabeça.
Muitos professores são competentes, muitos se esforçam de maneira louvável, mas bem poucos são capazes de penetrar no único domínio em que o ensino pode prosperar: o espaço comum entre os espíritos. Nisso a cegueira tem me ajudado. Eu praticara durante muito tempo a técnica da troca direta entre seres humanos. Avaliar as vozes, avaliar o silêncio. Graças à cegueira aprendi avaliar muitos sinais que me vinham de outras pessoas que, normalmente, escapam à observação dos que enxergam. Se existe um domínio em que a cegueira nos torna peritos, é o domínio do invisível.
Um auditório não é um inimigo para mim. É uma entidade nova para mim. Muitas conexões novas se formam, subitamente, dentro de mim e, como não tenho que abranger o auditório com a vista e dividir sua presença em percepções isoladas, o que seria uma tarefa infrutífera, o auditório me fala como um todo, como uma unidade capaz de comunicar-se.
Não vou esconder de vocês o fato de que amo minha profissão. Ela me permite, todos os dias, compartilhar um pouco da riqueza inesperada, inquietante que a cegueira me trouxe.
É preciso terminar. E realmente, há mais alguma coisa que eu possa acrescentar? Talvez isto: se a cegueira é tida como uma privação, ela se toma uma privação. Se pensamos na cegueira co¬mo uma deficiência que deve ser compensada a todo custo, um caminho talvez se abra, mas não vai longe.
Quando, pelo contrá¬rio, se considerar a cegueira como um outro estado de percepção, como um outro âmbito de experiência, tudo se tornará possível.
Continuar a ver, se bem a seu modo, é, sem dúvida, o mais importante para um cego. Eu não lhes disse que possuo olhos como vocês; disse que tenho olhos diferentes. Não lhes disse que minhas experiências são mais verdadeiras ou mais completas. Se¬ria uma presunção ridícula, e até mesmo uma mentira. Disse-lhes que chegou a hora de comparar nossas experiências. Quando minha esposa pinta, eu lhe pergunto o que seus olhos vêem, indago acerca de todas as linhas que eles seguem, de todas as cores que eles encontram. Ao mesmo tempo, pinto mentalmente, dentro de mim, um outro quadro. Sei que é ela quem vê o quadro real, mas eu o vejo tão bem quanto ela. Não é um grande milagre que haja tantas maneiras de perceber o mundo e não apenas uma?
Sim, vocês me ouviram bem: muitas maneiras de perceber — e é justamente esta a nossa chance!

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