terça-feira, 21 de abril de 2009

"Crimes de tortura não têm prescrição", diz JOSÉ DIRCEU


"Crimes de tortura não têm prescrição", diz José Dirceu
Por Isabella Bassi/Fábio Piperno - BandNews
AmpliarO Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) que aconteceu em outubro de 1968 em Ibiúna foi abreviado pela prisão de todos os participantes. Entre os cerca de mil detidos estava José Dirceu de Oliveira e Silva, na época uma das principais lideranças estudantis do país. Na época, a ditadura militar do Brasil acumulava energia para pouco depois iniciar o período de repressão mais dura aos opositores do regime.No dia 13 de dezembro daquele ano, quando o presidente general Costa e Silva assinou o decreto que instituía o Ato Institucional número 5, o país perdeu o que ainda restava de liberdade política. E para o detido militante José Dirceu, o endurecimento do regime significava que o fim da temporada de cárcere, que então parecia iminente, na verdade seria bem mais longa e rigorosa do que a imaginada. "Nós iríamos ser soltos naquele momento, mas veio o AI-5 e suspenderam", lembra ele.Com o AI-5 também chegou ao fim o relativo conforto com que eram mantidos os presos em Ibiúna. Líderes do movimento como Dirceu e o ex-deputado Vladimir Palmeira foram transferidos para o quartel de Quitaúna, na Grande São Paulo, onde passaram a ser tratados com severidade. "Lá era lavagem (a comida). E jogavam água fria à noite na cela".A liberdade só foi recuperada fora do país. Em setembro de 1969, Dirceu desembarcou na Cidade do México, país que aceitou receber os 15 presos libertados em troca do embaixador americano no Brasil, Charles Elbrick. O diplomata havia sido seqüestrado no Rio de Janeiro por militantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e da Ação Libertadora Nacional (ALN).Com Dirceu, foram para o México Gregório Bezerra, Vladimir Gracindo Soares Palmeira, José Ibrahim, João Leonardo Silva Rocha, Ivens Marchetti de Monte Lima, Flávio Aristides Freitas Tavares, Ricardo Villas Boas de Sá Rêgo, Mário Roberto Galhardo Zaconato, Rolando Fratti, Ricardo Zaratini, Onofre Pinto, Maria Augusta Carneiro Ribeiro, Agnaldo Pacheco da Silva e Luiz Gonzaga Travassos da Rosa.Na entrevista ao site bandnewstv.com.br, Dirceu lembra que ficou sabendo que estava na lista por um companheiro de cárcere chamado de Cabeleira. Depois da escala no México, foi com parte do grupo para Cuba, onde alguns daqueles militantes recorreram a tratamento médico para se recuperar dos efeitos da tortura física imposta pela ditadura. "Era (o regime) uma ditadura, que cometeu crimes, que não podem ser nem esquecidos, nem anistiados pela justiça, porque crimes de tortura não têm prescrição", diz Dirceu.
[BandNews] O que o senhor estava fazendo no dia em que o AI-5 foi anunciado e que impacto isso causou?
[José Dirceu] Eu estava preso, no Forte de Itaipu, que fica na Praia Grande. Naquela época chamava "Grupo de artilharia de Costa 90", que era comandado pelo então Tenente-Coronel Erasmo Dias. Eu, o Vladimir Palmeira, o Luís Travassos e o Antônio Ribas. O Travassos era presidente da UNE, o Vladimir da UME (União Metropolitana dos Estudantes) e o Ribas da UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas). No dia anterior, tinha sido libertado o Franklin Martins, que hoje é o Ministro da Comunicação (Social) do presidente Lula; o Marco Aurélio Ribeiro que foi deputado estadual de São Paulo, é advogado e foi do PMDB e do PT; o Omar Laino, grande empresário em Santos, personalidade na cidade, que foi presidente do Centro Acadêmico que eu presidi; e o Walter Cover, hoje diretor da VALE, que trabalhou comigo na Casa Civil. Todos nós fomos presos em Ibiúna em 12 de outubro de 1968. Eles foram soltos por habeas corpus. Nós iríamos ser soltos naquele momento, também por habeas corpus, mas veio o AI-5 e suspenderam.[BandNews] Seriam soltos no dia 13 de dezembro?[José Dirceu] Seríamos. No dia 13 de dezembro seria a nossa soltura. Eu fiquei preso até o dia 07 setembro de 1969, quando fomos trocados, eu e o Antônio Ribas, pelo embaixador dos EUA. O Antônio Ribas cumpriu pena no presídio de Tiradentes. Foi solto. Ele não foi incluído na lista por isso, porque todos sabiam que ele ia cumprir uma pena de 6, 8 meses. Após ser solto foi para o Araguaia, onde até hoje é desaparecido. Eu estava com a certeza absoluta que ia passar o dia 13 de dezembro comemorando a nossa libertação.[BandNews] E como eram as informações que chegavam a respeito da censura e da repressão enquanto o senhor estava na prisão?[José Dirceu] Na prisão nós já tínhamos a consciência que havia um endurecimento da repressão. Havia um fechamento político, a censura já existia, as torturas estavam começando. Já havia, na verdade, o Ato Institucional número 2. O regime militar havia extinguido as eleições para presidente da república, governador e prefeito de capital. Criou as áreas de segurança nacional, o que foi um pretexto para suspender eleições em cidades importantes onde a oposição, ou a esquerda, tinha maioria. Incluíram as áreas chamadas estâncias hidrominerais. Também já havia extinguido os partidos políticos e criado a Arena e o MDB. A censura já era uma realidade no país e a repressão política já era grande no movimento estudantil, aos intelectuais, em protestos e as informações que nós recebíamos não eram boas. Estava na iminência do fechamento. Como nós chamamos, um golpe dentro do golpe.[BandNews] Como chegou a informação do AI-5 para você?
[José Dirceu] Eu não me recordo. Sou péssimo de memória. O Vladimir Palmeira que é bom para isso. É capaz de lembrar o que estávamos fazendo, como estamos aqui agora. Não me recordo como chegou. Não tínhamos acesso a informação de jornal e rádio. Tínhamos o direito de tomar sol. A prisão lá era uma casa. Era uma prisão em boas condições, também porque o governo militar nos escalou para ser um pouco os garotos-propaganda de que não havia tortura e que havia bom tratamento.[BandNews] Mas vocês sofreram algum tipo de tortura?
[José Dirceu] Lá não. Cortaram o nosso cabelo, fizemos tratamento odontológico, podíamos tomar sol todos os dias e a alimentação era igual a do quartel. Comida sadia. A situação se agravou foi quando nós viemos aqui para a delegacia, porque ninguém nos queria. Os militares não queriam estudantes presos, muito porque havia muita publicidade. Aí nós viemos aqui para a delegacia da rua 11 de Junho. Ali era uma cadeia provisória. Ficamos lá uns 90 dias e não tinha nenhuma condição, nem mesmo lugar para tomar banho. Era tudo muito precário. Depois nós fomos para o Quarto RI de Quitaúna. Lá era lavagem, tratamento violento. Jogavam água fria à noite na cela. Não tínhamos acesso a nada. Mas nós sempre tivemos acesso às informações com os outros presos. Ou com os soldados presos. Havia muito soldado preso por pequenas contravenções, coisa de quartel. E contavam as coisas para nós. Emprestavam jornal, radinho. Eu me lembro como nós ficamos sabendo do seqüestro. Foi um preso que era líder do quartel. Nós o chamávamos de Cabeleira. Era um rapaz alto e magro. Ele me chamou e falou: "Olha, tem uma lista aí e você está na lista. Sequestraram o embaixador e você está na lista."[BandNews] Como foi a militância na clandestinidade?
[José Dirceu] Fui banido do país. Cassaram a minha nacionalidade, me colocaram em um avião e me mandaram para o México. Eu não pedi para sair do Brasil e não sairia jamais. Por isso que voltei. Ficamos no México. Fomos recebidos pelo governo e ficamos em um hotel que existe até hoje lá, no centro da cidade. Acho que ficamos até o final de outubro e depois fomos para Havana. Em Cuba nós éramos hóspedes do governo cubano. O comandante Fidel Castro nos recebeu no aeroporto. O Ricardo Vilas Boas, que é um músico, e o Flávio Tavares (jornalista) não foram para Cuba. O nosso herói, o Gregório Bezerra, que já era um homem de mais 60 anos, foi para a União Soviética tratar de um câncer. Os outros 12 foram para Cuba. Primeiro fomos conhecer. Alguns tinham sido torturados. O grupo foi procurar tratamento e se recompor porque alguns tinham sido muito torturados, como a Maria Augusta, João Américo da Silva Rocha, o Gregório Bezerra, o Onofre Pinto e o José Ibrahim também. O Ricardo Zaratini também foi muito torturado. Eu, o Travassos e o Vladimir não. Eles foram primeiro fazer tratamento. Depois fomos conhecer o país e fazer treinamento militar.[BandNews] Quando chegou a notícia do AI-5 vocês já tinham plena consciência que aquilo formalizava a ditadura militar?
[José Dirceu] Aquilo na verdade transformava a ditadura em um regime totalitário. Logo depois veio a pena de morte, se institucionalizou a censura. Tinha censor do Estado de São Paulo nos veículos de imprensa. Começaram as invasões nas universidades, a repressão a milhares de estudantes, já eram 34 mil os brasileiros fora do país e 14 mil entidades tinham sofrido intervenção. Centenas de jornais, revistas, livros, músicas, peças de teatros tinham sido censurados, vários artistas tinham sido expulsos do país como o Caetano Veloso e Gilberto Gil, teatros tinham sido invadidos e depredados. Mas o pior é institucionalizar e legalizar a tortura. Foi criada a Operação Bandeirantes (Oban), com o apoio de empresários e com muita anuência da imprensa. Depois evoluiu para o DOI-CODI, que já é dentro dos estados maiores, das regiões militares, como chamava na época. Então os exércitos formavam os DOI-CODI, que serviam na verdade para recolher informação, torturar, assassinar, desaparecer. Criaram uma estrutura para combater a subversão.[BandNews] A vida de quem estava preso piorou depois do AI?[José Dirceu] Lógico! Pioraram as condições na cela, alimentação, você não tem contato com ninguém. Havia muita violência porque também começaram a haver os choques armados entre a polícia civil, DOPS, militares e guerrilheiros.[BandNews] E entre vocês que estavam presos? Afinal, o convívio entre as diferentes correntes da esquerda nunca foi tranqüilo...
[José Dirceu] Eu nunca tive problema na prisão durante o regime por razão de política. Primeiro porque eu me dava muito bem com o Travassos, que era uma pessoa muito afável. O Vladimir sempre foi muito meu amigo. E o Ribas era um jovem, quase um adolescente, idealista e sonhador. Os secundaristas eram muito radicalizados. No movimento estudantil de 1968, o setor mais radicalizado era o de secundaristas. Não eram os universitários. Quem enfrentava mesmo a polícia, na linha de frente com bolinhas de gude e estilingue, eram os secundaristas. Nós ficamos presos quase todo o tempo, mas nós tínhamos boas relações. O Vladimir foi embora da delegacia, levado para o Rio. Só reencontrei o Vladimir no Galeão. Eu, o Travassos e o Ribas ficamos presos.[BandNews] Agora olhando tudo isso 40 anos depois, o presidente Costa e Silva teria caído, teria havido um golpe dentro do golpe, se não fosse o AI-5?[José Dirceu] Não diria que teria havido um golpe dentro do golpe porque ninguém discordou do AI-5. Não havia uma facção militar contra o AI-5. Não havia mais uma ala civilista ou democrática. Meu pai, por exemplo, é um gráfico, dedicou a vida toda à tipografia, criou sete filhos em uma cidade pequena de Minas, votou no Jânio e apoiava o movimento de 1964, o golpe militar, mas quando chegou em 1966 já estava rompido. Já era a oposição, achava que aquilo era uma ditadura, que deveria ter havido eleição em 1965. Quando o Costa e Silva toma posse já é um abre-alas e depois o Médici é a consolidação da ditadura. Não tem essa história que é por causa da luta armada e da guerrilha, porque no Brasil nunca houve, a rigor, luta armada ou guerrilha. No Brasil, ocorreram ações militares. Se você levantar hoje todas as ações que aconteceram e pegar qualquer outro país, você vai ver as diferenças. Guerra civil é outra coisa. No Brasil nunca chegou a ter luta armada que ameaçasse a estabilidade do regime.[BandNews] Mas você concorda que com o Médici houve a ascensão de um grupo ainda mais duro?[José Dirceu] Não, o Costa e Silva sempre foi da linha dura. Temos que lembrar que os militares tentaram tomar o poder em 1951, 1954, duas vezes em 1955, em 1961 e depois, em 1964, conseguiram. Então nós temos que lembrar que isso é uma doutrina, que tem origem na Escola Superior de Guerra. É uma luta política dentro do país. Os militares tiveram apoio das classes médias, das classes empresariais. É uma luta política entre concepções no Brasil sobre o desenvolvimento. O golpe militar não é uma quartelada militar. Em 1985, quando o Sarney assumiu, não tinha mais ditadura, mas tinha aquele entulho autoritário, com leis, controle de aparelhos de Estado, mas não tinha mais ditadura. São 21 anos de ditadura. Mas o Brasil de 1985 é outro país, que não tinha nada a ver com o Brasil de 1964. O país cresceu, se desenvolveu, concentrou renda, acumulou pobreza, favelas, muita desigualdade, aumentou a desigualdade regional, mas o país se industrializou, fez indústrias químicas, o país desenvolveu no setor de telecomunicações, desenvolveu no setor elétrico, criou indústrias de base... então é outro país. É verdade que abandonou as ferrovias, quebrou o país deixando uma dívida externa, mas o país desenvolveu o pró-álcool. Então você nunca pode analisar um período histórico dizendo que aquilo foi uma ditadura autoritária, que não teve nada no país. Isso não é verdade em nenhum país, em nenhuma época da história. Agora isso não tira o fato de que era uma ditadura, que cometeu crimes, que não podem ser nem esquecidos, nem anistiados pela justiça, porque crimes de tortura não têm prescrição.
Publicado no
site da BandNews em 05/01/2009

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